«Para a maioria dos Portugueses, o terramoto de 1755 é como se fosse uma lenda, e, no entanto, é o maior dos sismos e tsunami de que há notícia histórica.» Mónica Amaral Ferreira, Portugal Fenómeno é tudo o que se observa na natureza — o rasto do caracol, a formação do orvalho, a florescência das camélias, o nascimento de uma cria, o Siroco ou um sismo. Existe, evidentemente, a questão da probabilidade de ocorrência (e ainda bem!). Não obstante, os sismos acontecem. A Terra move-se e, com ela, os alicerces das nossas periclitantes civilizações, já que sistemas humanos infalíveis são, unicamente, miragens. Encaremos, pois, as convulsões naturais como mementos da nossa impermanência e aprendamos com elas. Mónica Amaral Ferreira, investigadora, engenheira e doutorada em Engenharia do Território pelo Instituto Superior Técnico, dedica-se à avaliação e mitigação do risco sísmico. Progride na incerteza inerente aos fenómenos com firmeza, infatigabilidade e lucidez, perscrutando a propagação de efeitos e as interdependências funcionais, em meio urbano e industrial, para comunicar e educar para os riscos. Porque os sismos acontecem. Cuidar, informar e preparar são directrizes sempre presentes na tua vida? Em criança queria ser médica. O destino quis que eu “tratasse” não de pessoas, mas das casas onde estão as pessoas. Para conhecermos os riscos a que estamos sujeitos, e o que podemos fazer para os reduzir ou eliminar, é necessário informar e educar os cidadão desde pequeno. Assim estamos a formar cidadãos conscientes que sabem o que podem fazer e o que devem exigir. Pois o estar seguro não depende só do próprio, mas de toda a sociedade, órgãos, instituições, etc. Não é uma tarefa fácil criar uma cultura de risco e de segurança, mas não é impossível. Eu tento passar essa mensagem nos vários projectos em que tenho colaborado. Como funciona o universo da investigação em Portugal? Pessoas altamente qualificadas que andam de bolsa em bolsa, sem garantia de continuidade e sem nenhum direito social. Infelizmente, reina a precariedade na investigação em Portugal. Por exemplo, quando uma bolsa termina, não temos direito a receber subsídio de desemprego. Estamos a trabalhar num projecto, mas ao mesmo tempo temos de estar a concorrer a novos projectos, pois nunca sabemos se no ano seguinte teremos bolsa. Temos de fazer de tudo um pouco, investigar, gerir projectos, angariá-los, escrever artigos científicos (pois é isso que dá curriculum), e viver de incertezas. Não sei que rumo está a ter a investigação em Portugal, mas sem a nossa presença, todos os dias, nas instituições, a produtividade irá diminuir a curto e médio prazos. Merecemos respeito e direitos como todas as outras profissões. O que te cativou no Risco Sísmico? No nosso curso (Engenharia do Território) nunca se falou em risco sísmico. A gestão e ordenamento do território e as regras de reabilitação do edificado ignoram, ou desvalorizam, a probabilidade de ocorrência de um sismo. Há como que uma recusa em ver o perigo e o risco que corremos. No último ano do curso, para fazer o Projecto Final de Curso, achámos que era um tema aliciante e diferente do que tínhamos feito em todos os trabalhos do curso. Fomos ter com o Professor Carlos Sousa Oliveira, que já estava a orientar o teu grupo (levantamentos do sismo do Faial, em 1998, e respectivo ajustamento do planeamento urbanístico) e assim nasceu o gosto pela área. Quando terminei o curso, ainda trabalhei dois anos e meio como consultora na área dos transportes, mas o gosto pelo risco sísmico persistia e fui trabalhar para Itália durante um ano. Voltei e ainda faço o que gosto (infelizmente, com um vínculo precário). O facto de já ter participado em várias missões pós-sismo (China, Itália, Japão, Espanha, Haiti) e de ver e saber o que acontece a um país e a uma sociedade, é o que não me deixa abandonar este tema, pois não quero que se repita o que aconteceu no passado. Portugal é um país de risco sísmico? E esse risco é igual em todo o território? Portugal localiza-se em regiões de média actividade sísmica e por isso tem sofrido as consequências de sismos de moderada a forte magnitude. Portugal continental situa-se a norte da fronteira entre as placas Euro-Asiática e Africana (4mm/ano). Os Açores situam-se na crista média do Atlântico, na proximidade da junção das placas Euro-Asiática, Africana e Americana. Os sismos que provocaram danos mais importantes no território português ocorreram em 1531, 1722, 1755, 1858, 1909, 1969, 1980 (Açores) e 1998 (Açores). O nosso território está dividido em quatro zonas sísmicas de acordo com a sua perigosidade (ver figura): Reduzida, Baixa, Moderada e Elevada. O Sul de Portugal Continental é a zona de maior risco sísmico, assim como o nosso litoral e as ilhas dos Açores. Em Portugal, o risco de tsunami, tal como o dos sismos, é real, sendo as regiões do Algarve, Costa Alentejana, Setúbal, Sesimbra, toda a zona ribeirinha de Almada, Alcochete, Lisboa e Costa do Estoril as de maior risco. O terramoto de 1755 está presente na memória dos Portugueses, embora de modo quase abstracto – foi há muito tempo. Consideras que a população está a par da dimensão dos danos que ocorreram? E da consequente dificuldade e demora na reconstrução?
Para a maioria dos Portugueses, o terramoto de 1755 é como se fosse uma lenda, e, no entanto, é o maior dos sismos e tsunami de que há notícia histórica. Sentiu-se fortemente em Lisboa, Algarve, sul de Espanha e Marrocos. Embora sem causar danos, também foi sentido nos Açores (tendo causado danos no edificado de Ponta Delgada (São Miguel), Angra do Heroísmo e Praia da Vitória (Terceira)), na Madeira e por quase toda a Europa. O número total de vítimas é muito incerto com estimativas que rondam as 20.000 e as 40.000 pessoas. Só em Lisboa, pensa-se que dos 200.000 habitantes da época, 20.000 terão morrido. A resposta à catástrofe foi rápida, contudo, a reconstrução completa da cidade de Lisboa prolongou-se no tempo por um período de, aproximadamente, 100 anos. Podes descrever um cenário hipotético de sismo em Lisboa? Sem nos darmos conta, estamos habituados a elevados padrões de qualidade de vida. Existe a confiança de que os serviços e as infra-estruturas que tornam possível o desenvolver das nossas actividades, como energia, água/saneamento, telecomunicações, transportes, banca, saúde ou segurança, estarão disponíveis para todos os cidadãos mesmo durante um desastre. A partir de uma certa dimensão, as múltiplas infra-estruturas que compõem um sistema são afectadas simultaneamente. Quanto mais sofisticados são os sistemas, mais vulneráveis e frágeis se tornam, devido às suas interdependências; consequentemente, a falha de um deles repercutir-se-á no funcionamento dos outros — são os efeitos em cascata. Os impactos de um sismo, além de existirem a vários níveis, têm diferentes durações: desde horas, como seja nalguns casos a reposição de electricidade ou das telecomunicações; a meses, como a reposição de gás; e anos, como a reconstrução de casas e monumentos e, talvez o mais longo de todos, a recuperação do trauma por parte da população – a reconstrução pessoal, se é que se consegue algum dia recuperar. Não vou escolher 1755 pois é o pior cenário de todos. Um sismo moderado, com magnitude 6.5-7.0, no sistema de falhas de Lisboa e Vale do Tejo (+/- 15 km NE de Lisboa), de acordo com o nosso simulador sísmico QuakeIST, poderá causar o colapso, parcial a total, a 30% do edificado habitacional da cidade de Lisboa, fora os outros danos (ligeiros, moderados) e toda a parte não habitacional (equipamentos, serviços, estradas, etc.). Note-se que este cenário não iria afectar apenas a cidade de Lisboa, pois aqui não há “fronteiras”. Imprevisibilidade implica prevenção. Em Portugal, investe-se na prevenção relativamente ao risco sísmico? Eu diria que se investe muito pouco em qualquer prevenção, seja do risco sísmico, de incêndios, de deslizamentos ou de outro qualquer. Há conhecimento, há trabalho feito e entregue às diversas autoridades, há alertas às entidades governamentais. Existe a responsabilidade do Estado pelos danos causados aos indivíduos, ao património e ao ambiente, no entanto, verificamos uma certa omissão estatal em implementar políticas públicas. Por que razão há tanto desinteresse por parte das autoridades e da população neste assunto? Falta de informação e/ou de memória? Falta de oportunidade para aplicar conhecimentos e técnicas a curto prazo? (E isto não é irresponsabilidade?) Dificuldade em lidar com hipóteses? Por parte das autoridades não há interesse, por parte da população há desconhecimento na matéria, portanto não podem exigir ao Estado uma coisa que desconhecem. O cidadão não sabe o risco que corre e o Estado passa a falsa sensação de segurança. Um exemplo: está a ser construído o novo hospital da CUF, em Alcântara. Além do impacto visual, a Câmara Municipal de Lisboa licenciou, conscientemente, um equipamento de saúde numa zona de risco sísmico elevado e de inundação por tsunami (e não só!), não obrigando a que o projecto tivesse isolamento de base (sistemas de protecção anti-sísmica). Relembro que os Hospitais são um dos tipos de edifícios que deverão permanecer operacionais após um sismo, de forma a garantir o seu funcionamento em casos de emergência. Não é necessário um sismo grande para parar um hospital. Um sismo moderado provoca a queda de elementos não-estruturais (tectos, equipamentos, vidros, condutas, armários, etc.) que inviabilizam a utilização dos hospitais durante semanas ou meses, além de causar ferimentos e vítimas. O Hospital da Luz é o único exemplo em Portugal em que foram considerados sistemas de protecção anti-sísmica. O mesmo se passa com as escolas: a maior parte não foi construída com regulamento sismo-resistente, pois estes só apareceram em 1958. As creches e jardins-de-infância, muitas vezes, encontram-se em edifícios com destino habitacional, cuja época construtiva é anterior à legislação anti-sísmica (1958), em edifícios pombalinos ou gaioleiros — onde obras entretanto realizadas contribuem ainda mais para a fragilidade dos mesmos. A população desconhece o risco, mas os governos, as autarquias e diversas entidades estão alertados para o problema e são apresentadas soluções, porém, como não temos tido sismos com danos, nada se faz, não é urgente. Pois para mim é urgente actuar agora, antes que seja tarde demais. É fundamental sensibilizar a população para que fique conhecedora do risco que corre, podendo questionar-se e exigir medidas preventivas. Tal como há campanhas de sensibilização ambiental que nos alertam para o impacto dos sacos de plástico, para a necessidade da reciclagem ou de consumir menos carne para diminuir a emissão de gases com efeito de estufa, entre outras, o mesmo devemos exigir para o risco sísmico e outros riscos, pois um sismo tem uma duração de cerca de 60 segundos, mas os seus impactos duram décadas (vítimas, desalojados, perda da habitação, perdas económicas….). Há coisas que cada um de nós pode fazer já. Por exemplo, investir 10 euros em ferragens para segurar os móveis e outros elementos não-estruturais pode salvar uma família de ferimentos graves. É simples, barato, mas ninguém sabe. É tudo sobre conhecer o risco. Como proteger a sua casa: https://www.youtube.com/watch?v=fvMKep9ZVgM Spot: https://www.youtube.com/watch?time_continue=6&v=ukckbaT_5Og A construção civil tem em conta o risco sísmico presente em grande parte do território português? Que medidas são, de facto, aplicadas nesta área? O primeiro regulamento de estruturas que obrigava ao cálculo dos efeitos dos sismos nas construções data de 1958. Actualmente, o regulamento que vigora é o de 1983, que será substituído pelos Eurocódigos (normas europeias). Regulamentação para a construção nova há, não existe é fiscalização. Importa frisar que o que os regulamentos fazem é evitar o colapso estrutural das edificações, para evitar vítimas, o que não quer dizer que possamos voltar a morar nessas casas. Por vezes, têm de ser demolidas ou sofrer grandes intervenções e reforço até voltarem a ser utilizadas. Para a reabilitação nos edifícios antigos (anteriores a 1958), o caso é pior. Não há qualquer norma ou regulamentação e assistimos, frequentemente, a obras de ampliação dos espaços, em que se deitam paredes abaixo, colocam-se vigas e já está. Ou seja, soluções que diminuem a resistência sísmica do edifício que já não a tinha. Dedicas-te, especialmente, à sensibilização. Nesse sentido, co-criaste o jogo de computador Treme-Treme, concebes e dinamizas actividades para crianças. Que balanço fazes deste trabalho? Na realidade trabalho em várias frentes e com diferentes entidades. Faço avaliação do risco do edificado, interdependências e propagação de efeitos, medidas de mitigação do risco, missões pós-sismos, e nos últimos três anos tenho trabalhado um pouco na área da comunicação. Para o público em geral, sobressai (e ainda bem!) o trabalho na área da educação e comunicação do risco (jogos, campanhas de sensibilização). Quer dizer que estamos a desenvolver um bom trabalho, mas ainda há um longo caminho a percorrer e muita gente a quem chegar. Em 2015, desenvolvemos o jogo online Treme-Treme (www.treme-treme.pt), que tem tido grande aceitação junto ao público mais novo. Este ano estamos a trabalhar na versão 2.0. Vou a escolas falar de sismos, fazer actividades sobre o tema com os alunos. Actualmente, estou a desenvolver guiões de actividades adaptadas para o ambiente de sala de aula e um projecto educativo que já está a decorrer no Museu de São Roque (A Terra Treme! É um sismo! http://www.museu-saoroque.com/pt/home/escolas-18-19.aspx). É muito importante envolver as crianças e os jovens desde cedo em actividades desta natureza, pois desperta-os para problemas reais, permitindo-lhes obter uma cultura de risco e tornarem-se cidadãos conscientes. Aprender brincando é a melhor forma de passar o conhecimento, pois é a linguagem natural das crianças. Enquanto bolseira pós-doc, por onde gostarias de enveredar agora? Na minha primeira entrevista de trabalho, na área dos transportes, perguntaram-me onde eu me via passados cinco anos. Respondi que queria estar a trabalhar na área do risco sísmico! E assim foi, comecei nos transportes e depois fui atrás dos sismos. Há tanto ainda por fazer, espero poder continuar a trabalhar nesta área. Já sentiste um sismo? O que pensas, o que fazes nesse momento? Já senti três “pequenos”: no Japão e em Itália. Mesmo trabalhando nisto, de manhã à noite, a reacção por vezes não é a melhor, porque por vezes fico sem reacção. Daí a importância em fazer os exercícios, os simulacros; para que seja uma acção rotineira e com calma. Mas o mais importante é as construções estarem bem preparadas, pois de pouco serve o indivíduo saber agir e proteger-se se o edifício cair. Lidas bem com a imprevisibilidade (da vida)? Sou bolseira e trabalho com um fenómeno que não se pode prever, portanto imprevisibilidade é a ordem do dia. Comments are closed.
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